[RESENHA] PELA BANDEIRA DO PARAÍSO, de
JON KRAKAUER


Ano de Lançamento: 2003
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 382
Nota: 5/5
Gênero: Não ficção

"Solto um suspiro e, com um trecho das escrituras,
Digo que Deus nos mandou fazer o bem em vez do mal;
Assim escondo a nudez da minha perversidade
Com velhos pedaços roubados da Palavra sagrada
E pareço santo quanto mais ajo como demônio."
Willian Shakespeare, Ricardo III

Quando vi o sensacional filme “Na Natureza Selvagem” de Sean Penn, fiquei maravilhado com a história e mais curioso ainda quando soube que era um roteiro adaptado de um livro homônimo do autor Jon Krakauer. Dali em diante, me interessei por tudo que o escritor escreveu e me deparei com esta obra fantástica.

Pela Bandeira do Paraíso foca-se no fanatismo religioso que levou Ron e Dan Lafferty a assassinarem brutalmente a cunhada Brenda Lafferty, e a sobrinha Erica Lafferty (de apenas 15 meses). Brenda por inúmeras vezes, pedia para que o marido se afastasse da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Chegou até a deixar o marido mas acabou voltando acreditando que, talvez, o marido abandonasse a religião. Infelizmente o irmão mais velho de Allen Lafferty, Ron, recebeu um “comunicado divino” de Deus para que se livrasse da sobrinha e da cunhada. Partindo da premissa desses assassinatos (na verdade, barbáries) Jon Krakauer foca sua narrativa não apenas na vida de Ron e Dan Lafferty, mas também na história do surgimento do Mórmonismo e de seu profeta fundador Joseph Smith Jr. em 1830. 

O que está por trás dos assassinatos está, é lógico, relacionado a falta de bom senso, empatia, e humanidade dos irmão Lafferty, mas também, há alguns pontos absurdos e completamente retrógrados presentes nas doutrinas Mórmons; ao poder de manipulação que as religiões tem sobre seus fiéis; e sobre o fato de que o bom senso, raramente suplanta o que veio da voz de Deus.  

Apesar de toda a loucura envolvendo o tema e, principalmente, a implicação filosófica que o livro nos reporta, Jon Krakauer tenta, e consegue, entregar um trabalho jornalístico muito idôneo sobre a trajetória da formação dos Mórmons. Por mais absurda que possa ser determinada passagem, o autor se prende ao jornalismo sério. Mesmo assim, algumas passagens são no mínimo cômicas. Outras são de uma seriedade hedionda.  

A história dos Mórmons começa quando o povo de Jerusalém migra para a América do Norte sobre a tutela do profeta Lehi no ano 400 d.C. Após a morte do profeta a frente do povo, eles se dividem em duas correntes: os Nephitas, de pele clara e tementes aos desígnios de Deus e os Lamanitas, invejosos e violentos. A batalha entre os dois grupos levou a total aniquilação dos Nephitas – 230 mil no total. Por isso não havia pessoas de pele clara quando Colombo desembarcou aqui. Como castigo, Deus escureceu a pele dos Lamanitas como sinal de maldição sendo eles, os ancestrais dos índios americanos. O último dos Nephitas, Moroni filho do profeta Mórmon, voltaria, como anjo, 14 séculos depois para entregar as placas de ouro com as bases da religião Mórmon para Joseph Smith jr, fundador da religião Mormón.

Joseph Smith Jr., foi uma figura que antes da de ser tornar líder religioso, já havia sido acusado de vários crimes. Entre eles, charlatanismo. Isso, é claro, não foi empecilho para que ele conseguisse arregimentar fiéis. Uma das coisas propagadas por Smith que possibilitou a propagação da religião, foi o fato de o profeta, dentre alguns outros dogmas, afirmar que o profeta em exercício (logo, líder da comunidade religiosa) receberia mensagens de Deus. Mensagens estas que confirmariam passagens presentes nas placas de ouro entregues por Mororni. Em outras ocasiões, modifcavam-nas parcialmente. E em outras, anulavam a mensagem inicial sendo suplantada por uma nova.

Esta particularidade foi algo que beneficiou muito Smith pois, uma vez confrontado com alguma coisa, “recebia” uma mensagem divina e logo resolvia o assunto. Como quando a esposa de Smith não querendo aceitar a poligamia do marido, afirma que ela também irá arrumar outros maridos (poliandria). Pra acabar com a discussão, Smith chega um belo dia e afirma pra esposa que teve uma revelação de Deus dizendo que para as mulheres, seria proibido arranjar outro esposo sendo permitido apenas um.

Apesar de ser algo que beneficiou Smith, as revelações também foram um problema. Outros profetas começaram a receber tais revelações e, a exemplo de Smith, tais revelações sempre eram algo que beneficiavam um grupo em detrimento do outro. Logo ficou difícil pra Smith manter a coesão da igreja em formação.

No livro também vemos pontos complicados da igreja como o massacre realizado pelos fiéis em Mountain Meadows, onde 140 pessoas indefesas foram mortas (inclusive mulheres e crianças) e, talvez o ponto que mais leva estranheza para os não adeptos da religião: a questão da poligamia - que muitas vezes é somada a pedofilia. Mas não é aquela em que uma mulher, já adulta, decide casar com um homem por livre vontade. Nos fundamentalistas mórmons, o profeta, assim que sabe do primeiro ciclo menstrual de uma menina, recebe uma mensagem divina dizendo que ela deve casar-se com determinado membro da igreja – normalmente com 50, 60, 70 anos e já casado. Então, nesta realidade, vemos meninas de 10, 11 anos, sendo obrigadas a casar com alguém absurdamente mais velho que elas. Uma curiosidade sobre isto, é que esta poligamia/pedofilia é defendida pelos mórmons porque, segundo eles, isto é algo imprescindível para manter, pasme, a família. Em resumo, praticam algo, e creem que isso é a regra para  que a sociedade viva de forma coesa e em paz de acordo com os desígnios de Deus. Alguma semelhança com algo nos nossos tempos?

Tem até um caso em que um homem de 70 anos, casado com uma mulher de 40, casa-se com a irmã dela, depois com a filha dela e posteriormente com a própria filha. Em outro caso, vemos um mormón que sequestra uma menina não mórmon porque recebeu a mensagem divina de que ela deveria ser sua esposa.

É nesse ambiente que Krakauer relata a fatídica história dos irmãos Lafferty. A história de desavenças na família era forte. A própria Brenda já havia apanhado do esposo e saído de casa. Infelizmente voltou. Como ela sempre fora contra o marido frequentar a igreja, os irmão dele, principalmente o mais velho, Ron, alimentavam uma animosidade contra ela. Não viam com bons olhos o matrimônio do irmão. Além disso, Brenda fora uma das pessoas que deu apoio a ex-esposa de Ron, Danny, para que ele se divorciasse. Mas a "insolência" de Brenda estava com os dias contados: Ron Lafferty recebeu uma mensagem divina que dizia: 


"Assim diz o senhor aos Profetas meus servos. É minha vontade e ordem que os seguintes indivíduos sejam removidos por ti, a fim de que Minha obra siga adiante. Pois eles se tornaram efetivamente obstáculos em Meu caminho e não permitirei que Minha obra seja detida. Primeiro, a mulher de teu irmão, Brenda, e sua filha; depois Chlow Low e em seguida Richard Stowe. E é Minha vontade que sejam removidos em rápida sucessão e que sejam transformados em exemplo a fim de que outros compreendam o destino daqueles que lutam contra os verdadeiros Santos de Deus. E é minha vontade que esse assunto seja resolvido o mais rapidamente possível, e eu preparei a maneira pela qual Meu instrumento aparecerá e as instruções serão dadas a Meu servo Todd. E é minha vontade que ele dedique grande cuidado em seus deveres, pois eo o criei e preparei para essa importante tarefa, e não é ele semelhante a Meu servo Porter Rockwell [?] E grandes bençãos o esperam se cumprir Minha vontade, pois eu sou o Senhor teu Deus e tenho controle sobre todas as coisas. Fica tranqüilo e ciente de que estou contigo. Amém." 
Vale lembrar que Richard Stowe e Clow Low, a exemplo de Brenda, apoiaram e forneceram subsídios para que Danny se separasse de Ron Lafferty. Divórcio este que devastou o psicológico de Ron fazendo com que ele se voltasse ainda mais para a religião. 

A defesa dos réus alegou que eles eram loucos. A promotoria, sustentada por avaliações psiquiátricas, derrubou esta tese afirmando que os irmãos Lafferty eram tão loucos quanto qualquer outro religioso. Ron pegou pena de morte e Dan prisão perpétua. 

Enquanto lia o livro, foram vários os momento de perplexidade. E paralelamente a isso, o que mais eu pensava era o seguinte: até que ponto a religião pode ditar os rumos da sociedade? Se determinada religião deve estabelecer parâmetros sociais que devem ser seguidos por todos, inclusive para aqueles que não à seguem? Até que ponto o discurso religioso e as práticas religiosas podem caminhar acima dos parâmetros legais? E se a resposta pra isso for sim, qual fé deve ser seguida? São muitas as formas de fé, são muitas as religiões. Qual seria a que melhor organizaria a sociedade para que todos vivessem felizes e em paz? Em suma, qual seria a verdadeira?

Muitos podem afirmar que a religião correta é aquela que propaga o amor, a paz, e a verdadeira vontade de Deus - e que seria, provavelmente a que ele segue. A maioria delas afirma isto, inclusive, a grande maioria dos religiosos que conheço são pessoas de bem entretanto, são muitos os religiosos que propagam seu discurso de ódio revestidos pela capa de vontade divina. É esse o discurso do Estado Islâmico, de Bin Laden e foi o discurso de  Ron e Dan Lafferty.

E se a resposta for não, a religião então deve ser proibida? Um dos pontos fortes do livro é o fato de que o autor não tenta desacreditar o leitor a abdicar de determinada religião da qual ele segue mas, outrossim, ele faz o leitor questionar a aplicação da religião dentro e fora dos templos. 

Gostei demais do livro. Jon Krakauer pega exemplos pontuais para nos impelir a abrir os olhos para o problema da fé cega e das organizações religiosas sem tentar coagir o fiel a abandonar sua fé. Livro mais que recomendado.

Vou terminar essa resenha com a frase de Dan Lafferty: “A religião organizada nada mais é do que ódio disfarçado de amor”.








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